segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Falta um rock com mais “nirvana”

No budismo, o nirvana é a superação do ego, o desapego material e carnal, um estado de consciência universal, uma superação das paixões terrenas, e, portanto, a libertação do sofrimento que é causado pelos desejos do ego. O nirvana seria atingido após muita prática meditativa.

Buda resiste às tentações.

Mas esta postagem refere-se à banda de rock grunge Nirvana, formada e liderada por Kurt Cobain e que se tornou conhecida no início da década de 1990. A banda era caracterizada por um profundo desapego do show business e apatia pela indústria fonográfica. Kurt Cobain era o vocalista, guitarrista e compositor. Suas letras eram caóticas e sentimentais, compostas de forma quase irracional (como se fossem por livre associação) e cantadas de um modo tão emotivo e tão frenético que lembram telas expressionistas. Um exemplo é a canção intitulada Tourette's. Alguém poderia achar que é uma gritaria sem sentido, mas como o título deixa óbvio, a música emula os sintomas da síndrome de Tourette.

Se para você os gritos de Cobain e o rock do Nirvana soam como barulho,
então talvez você confunda uma tela de Munch com um rabisco infantil.

Seu estilo de tocar guitarra era alternativo/experimental, aludindo a uma arte distorcida como se fosse uma forma de cubismo aplicado à música. Ouso dizer que Kurt Cobain está para o rock assim como Pablo Picasso está para as artes plásticas. No caso de ambos, não era uma técnica apurada o que estava em evidência, mas a reflexão sobre o conceito de Arte (a música para um e a pintura para o outro).

Expressionismo em Picasso e Cobain
 
A arte distorcida: cubismo de Picasso e guitarra de Cobain.

As músicas e as letras de Kurt parecem não fazer sentido para muitos, e às vezes até para ele mesmo aquilo não fazia sentido, então ele brincava com os fãs que tentavam dar sentido à suas composições (ouça: In Bloom). Por isso ele foi genial, conseguindo demonstrar a apatia de sua geração (ouça: Smells Like Teen Spirit). E ao quebrar guitarras e equipamentos ao vivo, Kurt deixava claro que não se importava com nada daquilo (fama, dinheiro, mídia etc). E ele fez isso de forma muito consciente, como é possível notar ao analisarmos sua obra mais de perto (o que tomaria um grande espaço aqui). O lado triste disso é que ele levou tudo tão ao extremo, que tirou a sua própria vida aos 27 anos. Mas obviamente isso não foi conseqüência de uma filosofia budista ou de uma atitude punk, mas sim da depressão que o acompanhou desde a sua adolescência (ouça: Lithium) e do sentimento de abandono/carência por que passara em sua remota infância (ouça: Sliver).

O Rock in Rio foi carente nesse sentido, foi carente de um rock contestador, com alma e sentimento rebelde, punk, anárquico... Por outro lado, houve apresentações belíssimas e impecáveis como as de Coldplay, Stevie Wonder, Elton John, Metallica e Guns n’ Roses. Esta última é um caso à parte. Não venha dizer que o Axl já não é o mesmo, isto é óbvio, ele envelheceu, mas é uma lenda viva e ainda é uma das vozes mais poderosas da história do rock.

A Pitty fez uma apresentação madura com ótima banda e direito a homenagem ao Nirvana. O show do Evanescence marcou definitivamente a volta de uma das vozes femininas mais potentes do rock atual. System of a Down fez ótima apresentação e com algumas pitadas de humor e contestação política, mostrando que ainda há músicas engajadas, e dentre elas eu incluiria também algumas do Guns, como Welcome to the Jungle e Civil War (esta eles não tocaram) e uma do Coldplay, a canção Us Against the World (poderia ser interpretada como U.S. Against the World)? – creio que haja uma crítica implícita aí, aludindo ao intervencionismo dos EUA no mundo.

Tom Zé e Os Mutantes também mostraram alguma contestação política, mas infelizmente (e injustamente) eles não estavam no palco principal. Mesmo assim foi uma ótima apresentação de uma das poucas bandas de rock psicodélico ainda na ativa. Senti falta de bandas de reggae lá. Já que o Rock in Rio é um festival eclético, o reggae caberia bem, dentre outros motivos, por ser um estilo musical que se aproxima do rock. E no campo das letras, o rock e o reggae são caracterizados pela crítica social e contestação política (coisas raras nas músicas de hoje). A contestação, a rebeldia, o inconformismo e a ótima música são algumas das qualidades que eternizaram John Lennon no rock e Bob Marley no reggae. Estes dois fazem falta hoje!

E também faz falta um Nirvana nos dias de hoje, tanto no sentido budista quanto no sentido de “uma banda com atitude roqueira”. O mundo carece de uma arte desapegada, desinteressada, que seja apenas arte e não entretenimento lucrativo. A arte é para todos e ela se eterniza, o entretenimento é para quem pode pagar e é passageiro, fugaz, efêmero...



Nevermind, que no mês passado completou 20 anos, ainda é referência para o rock alternativo
(a capa do álbum mostra os rumos que a sociedade estaria tomando).



O show acústico neste disco deixa em evidência o outro lado da banda:
a sutileza no trato com arranjos instrumentais e vocais.

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