domingo, 18 de janeiro de 2015

A escopofilia literária



A cena literária voyeurística por excelência é aquela descrita por Heródoto [...] na qual a rainha é observada pelo favorito do rei que por sua vez espia o favorito que espia a rainha. Com isso nos deparamos com uma situação voyeurística ao cubo [...].
O voyerismo, ou se preferirem, a escopofilia, é um componente importante da literatura e da narrativa, como, ainda de modo mais óbvio, no cinema e na fotografia. Deste modo o artista não se faz somente espectador de algo em segredo, íntimo, escondido, proibido, mas também, em certo sentido, cúmplice de um processo de conhecimento que podemos definir como subversivo. O projeto consiste em exprimir aquilo que a sociedade normalmente reprime, assumindo na área da representação aquilo que por hipocrisia, medo ou ignorância sempre é excluído e que constitui uma parte imensa da vida real, isto é: o sexo na sua extrema e indefesa nudez, no seu momento existencial, carnal, corporal, como mostra claramente o poema de Mallarmé “Une négresse par le démon secouée”.

(Tinto Brass, Vincenzo Maria, 1994, in “L’uomo che guarda”, tradução nossa).



O romance de Vladimir Nabokov adaptado para o cinema por Stanley Kubrick mostra que às vezes a escopofilia pode não se bastar em si, mas ser o primeiro ato de um drama mais profundo.

“Rear Window” de Alfred Hitchcock manifesta uma escopofilia que não está necessariamente conectada à libido, aparentemente contradizendo Freud, mas não necessariamente.

Em suma, a ação de espreitar pela janela, fechadura ou câmeras ocultas apenas divergem no grau de subversão do espectador, mas em nada diferem do ato de assistir a um filme, ouvir um rumor, ler, ver ou ainda tentar, mesmo que na imaginação mais íntima, acessar um tabu interditado. O grau de subversão é determinado pelo nível de comprometimento do espectador com a moral que lhe fora ensinada e internalizada, ou imposta. Ainda assim, esse empenho é desafiado e algumas vezes destronado, mesmo que temporariamente, pela veleidade ou simples anseio, isto é, a curiosidade comum a mamíferos e mais ainda aos primatas. Todavia, o gênero homo é o único que sofre por isso.

Daí vem a importância literária e filosófica do tema, não apenas por ser um traço comportamental da espécie, mas por trazer à discussão questões existenciais que podem ser relevantes para o estudo das artes e da psiquê.

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